#FintechFrames: A ambição da Circle para criar um "protocolo do dinheiro" com stablecoins: mais barato, rápido e eficiente
W FINTECHS NEWSLETTER #147
👀 English Version 👉 here
Fintech Frames — #03 edição
Fintech Frames é uma série da W Fintechs Newsletter que destaca as jornadas e estratégias de fintechs que se estabeleceram no mercado — seja por meio de um IPO, aquisição ou uma avaliação superior a US$ 10 bilhões.
Outras edições Fintech Frames
Para quem busca histórias de fundadores ainda em estágios iniciais, 3W in Fintechs mergulha no início da jornada de muitos negócios. Clique 👉 aqui para ver todas as edições.
👉A W Fintechs é uma newsletter focada em inovação financeira. Toda segunda-feira, às 8:21 a.m. (horário de Brasília), você receberá uma análise profunda no seu e-mail.
Durante séculos, a confiança no dinheiro esteve ancorada em elementos tangíveis: metais preciosos, selos reais, notas assinadas por autoridades centrais. O ouro era um bem escasso e, por isso, era um símbolo de estabilidade. Depois vieram os bancos centrais, os sistemas bancários e os títulos públicos. Todos operavam com uma lógica semelhante: inspirar confiança em algo abstrato por meio de instituições sólidas e regras rígidas. O valor então era preservado porque alguém — uma instituição, um conjunto de regras, ou uma pessoa — confiável garantia isso.
Mas no século XXI, essa lógica começou a se inverter. A confiança deixou de vir apenas de autoridades centrais para emergir de arquiteturas distribuídas, audíveis e programáveis. O código passou a ocupar o centro das operações. Smart contracts, ledgers imutáveis e APIs abertas começaram a moldar uma nova forma de acreditar no valor: não mais apenas por quem emite, mas por como ele opera. E nesse contexto, a Circle surgiu como uma nova espécie de alquimista: não convertendo metais em ouro, mas convertendo um conjunto de algoritmos em estabilidade.
O USDC, sua stablecoin nativa, também depende de confiança, mas cada unidade é lastreada, auditada, transparente e sobretudo, acessível por qualquer aplicação. A confiança, neste caso, não é concedida, mas sim verificada. E é isso que torna a proposta da Circle tão poderosa: ela não substitui bancos centrais, mas oferecer uma nova lógica monetária para um mundo que funciona em tempo real e onde o dinheiro precisa ser tão rápido, auditável e interoperável quanto os dados que trafegam pela internet.
A obsessão dos fundadores por protocolos abertos
Por trás da história da Circle, há uma obsessão dos fundadores que foi fundamental e explica o que vemos hoje a empresa fazer no mercado. Muito antes do hype sobre blockchains, Jeremy Allaire já defendia uma internet aberta e programável. Nos anos 1990, fundou a Allaire Corporation, que criou o ColdFusion, uma linguagem que facilitava a construção de aplicações web. Depois, lançou a Brightcove, uma das primeiras plataformas de vídeo online, e atuou ativamente no W3C (World Wide Web Consortium), defendendo padrões abertos como o HTML5 contra formatos proprietários. Mas por trás de cada uma dessas iniciativas estava uma convicção mais profunda: a de que protocolos abertos moldariam o futuro.
Foi com essa mentalidade que, em 2013, ele fundou a Circle, ao lado de Sean Neville. Na época, o Bitcoin começava a chamar a atenção, mas o mercado ainda era dominado por narrativas ideológicas, soluções frágeis e interfaces pouco amigáveis para os usuários finais. Allaire enxergava que as criptomoedas não eram uma revolução contra o sistema financeiro, mas sim uma oportunidade para reconstruí-lo com base em um código auditável, acessível e interoperável. A primeira aposta da Circle foi aproveitar o contexto da época e lançar uma wallet de Bitcoin. Era uma tentativa de dar forma usável à ideia de dinheiro digital. Mas rapidamente ficou claro que a missão era maior do que apenas armazenar ou transferir ativos.
A ambição de Allaire era transformar o dinheiro em um protocolo da internet, assim como o HTTP transformou o conteúdo e o SMTP os e-mails, e isso exigiria mais do que criptomoedas que por vezes são muito voláteis. Para ganhar tração e confiança do mercado, exigiria estabilidade, confiança regulatória e integração com o sistema financeiro tradicional. Nascia, ali, o embrião do USDC.
A tese por trás do USDC
O lançamento do USDC, em 2018, foi o início de uma tentativa deliberada de criar um ativo digital confiável o suficiente para operar no coração da economia global, e não apenas nas margens dela ou de forma especulativa. O projeto nasceu de uma parceria entre a Circle e a Coinbase, duas das empresas mais reconhecidas do ecossistema cripto, e foi estruturado sob a governança do Centre Consortium — uma entidade criada justamente para garantir a transparência, o compliance e a interoperabilidade desde os primeiros dias de operação1.
O objetivo era construir um dólar digital que pudesse circular em qualquer blockchain, sem perder de vista os padrões exigidos pelo sistema financeiro tradicional. Ou seja, casar o mercado cripto com o sistema financeiro tradicional.
Diferente do Tether (USDT) que, embora fosse amplamente utilizado, sempre esteve cercado de dúvidas quanto à solidez das reservas e à governança, o USDC foi pensado desde sua origem para ser 100% lastreado em reservas em dólar e títulos do Tesouro dos EUA, com auditorias regulares e relatórios públicos. O objetivo era criar uma moeda digital que inspirasse o mesmo nível de confiança que um banco regulado, sem depender de estruturas fechadas ou pouco transparentes. O USDC, portanto, se posicionou não como um instrumento especulativo, mas como uma nova forma de liquidez, sendo mais previsível e rastreável.
A interoperabilidade foi outro pilar da tese. Desde os primeiros dias, o USDC foi pensado para operar em múltiplas blockchains (Ethereum, Solana, Avalanche, Arbitrum, Base, Polygon e outras) de forma fluida e confiável. Isso o tornou um componente fundamental para aplicações de pagamentos, DeFi, gaming, tesouraria corporativa e transferências internacionais. A sua arquitetura foi desenhada para permitir que qualquer aplicativo financeiro, carteira digital ou empresa pudesse integrá-lo.
Mas talvez o aspecto mais estratégico da tese seja sua conformidade com regulações. Em vez de adotar uma postura de confronto com autoridades monetárias, a Circle escolheu o caminho oposto: buscar proximidade, diálogo e alinhamento com órgãos reguladores. Isso deu ao USDC uma vantagem competitiva significativa pois enquanto outros tokens “pediam permissão” depois de já estarem em operação, o USDC entrou nos mercados com licença, adotando um discurso de responsabilidade e segurança institucional desde o primeiro dia.
Essa abordagem fez com que o USDC fosse utilizado por bancos, fintechs, empresas listadas e até governos e fez com que o USDC se tornasse uma camada monetária auditável que conecta o mundo fiat ao mundo on-chain, tornando-se um passo fundamental para tornar o dinheiro digital tão confiável quanto qualquer sistema bancário tradicional, só que infinitamente mais rápido, aberto e programável.
O modelo de negócios da Circle
Embora o USDC seja o ativo mais visível da Circle, a empresa vai muito além da emissão de stablecoins — ela também é emissora do EURC, a versão do Euro. Por trás do token está uma infraestrutura financeira completa, pensada para realmente integrar o mundo bancário tradicional ao universo cripto.
A Circle se posiciona como uma empresa de infraestrutura, oferecendo uma gama de APIs financeiras para pagamentos, tesouraria e custódia digital, que permitem que bancos, fintechs e marketplaces operem com criptoativos de forma transparente e regulada. Nos últimos anos, a empresa expandiu esse leque com produtos como carteiras digitais com segurança avançada (MPC), que dividem a chave de acesso entre diferentes partes para reduzir riscos de roubo; contratos inteligentes prontos para uso, que permitem tokenizar ativos sem precisar escrever código do zero; e o CCTP, um protocolo que permite mover USDC entre diferentes blockchains de forma rápida, segura e programada.
Entre os principais produtos estão o Circle Payments (para aceitar pagamentos em cripto), o Circle Accounts (uma conta empresarial para gerenciar ativos digitais) e o Circle Payouts (para realizar pagamentos globais em múltiplas moedas e stablecoins). Essas APIs são o motor comercial da Circle: a empresa ganha dinheiro quando seus clientes movimentam volumes maiores, utilizam serviços mais sofisticados ou integram a infraestrutura de forma mais profunda. É como se a Circle oferecesse a camada “infra” do novo sistema financeiro, sem exigir que o usuário final entenda o que está acontecendo por trás. Com o lançamento do Paymaster, por exemplo, empresas podem cobrir automaticamente os custos de transação das blockchains (as chamadas “gas fees”), permitindo que o usuário pague tudo em USDC, sem se preocupar com moedas como Ethereum ou Polygon — algo que facilita muito a experiência para quem não domina o mundo cripto.
Outro componente estratégico do modelo é a infraestrutura de conversão entre cripto e fiat — os chamados on-ramps e off-ramps. A Circle facilita a entrada e saída de empresas e indivíduos no ecossistema cripto, conectando diretamente carteiras digitais, contas bancárias e blockchains. Essa ponte permite que as stablecoins da empresa sejam usados de forma prática e segura tanto por desenvolvedores quanto por empresas tradicionais.
Por fim, uma das principais fontes de receita da Circle vem da remuneração sobre as reservas do USDC, que são aplicadas majoritariamente em títulos do Tesouro dos EUA e depósitos bancários em instituições parceiras. Esse modelo permite que a empresa gere receita passiva de forma previsível, sem depender exclusivamente de tarifas sobre APIs e seus produtos. À medida que o USDC cresce em circulação, as reservas aumentam e consequentemente o retorno financeiro aumenta.
Segundo um relatório da S&P Global Ratings (dez. 2024)2, as reservas da Circle são classificadas com a nota mais alta possível (1 – “muito forte”) em qualidade de ativos. Em outubro de 2024, o valor justo das reservas era de US$ 34,73 bilhões, para uma circulação de US$ 34,67 bilhões em USDC. A composição desses ativos incluía 23% em títulos do Tesouro, 63% em acordos de recompra (repos) e 14% em dinheiro, com a maior parte alocada no Circle Reserve Fund (CRF), um fundo registrado na SEC e gerido pela BlackRock. Essa estrutura de liquidez é reforçada por uma média de vencimento de apenas 13 dias nos ativos do CRF, o que proporciona estabilidade e resposta rápida a resgates, e permite à Circle capturar rendimento financeiro com baixo risco e alta previsibilidade, e manter a paridade do USDC com o dólar.
Além disso, a gestão das reservas passa por auditorias mensais independentes realizadas pela Deloitte & Touche LLP. Do total das reservas, cerca de US$ 4 bilhões estavam alocados fora do fundo CRF, em bancos regulados e identificados como Global Systemically Important Banks (GSIBs), para fins de gestão de liquidez. Desde os eventos de março de 2023, quando parte dos fundos estava no colapsado Silicon Valley Bank, a Circle reforçou sua política de diversificação, priorizando instituições com alta classificação de risco.
A empresa também se adaptou ao regulamento europeu MiCA, mantendo reservas específicas na França para clientes do Circle Mint — a plataforma usada por empresas para emitir e resgatar grandes volumes de USDC e EURC, com liquidação quase instantânea e conexão direta a bancos. Pela regra, ao menos 60% dessas reservas devem estar em contas bancárias locais. Essa estrutura reforçou a governança e a resiliência de suas stablecoins diante de volatilidades externas.
Se você está gostando desta edição, compartilhe com um amigo. Isso ajudará a espalhar a mensagem e me permitirá continuar oferecendo conteúdo de qualidade de forma gratuita.
Circle como infraestrutura global
O Circle Payments Network (CPN) representou um outro marco da empresa na sua busca por modernizar a infraestrutura financeira global, oferecendo uma alternativa digital, escalável e interoperável aos sistemas legados que sustentam o fluxo de dinheiro entre países.
Hoje, as infraestruturas de pagamento continuam presas a protocolos da era pré-internet — como o SWIFT e ACH — que impõem altos custos, prazos longos e múltiplos intermediários. Em 2024, por exemplo, enviar US$ 200 internacionalmente custava em média 6,65%, segundo o Banco Mundial, e uma transferência internacional podia ultrapassar os US$ 50 por transação.
Baseado em suas stablecoins como USDC e EURC, o CPN propõe um novo protocolo de pagamentos que conecta instituições financeiras ao redor do mundo. Em vez de mover diretamente os fundos, o CPN atua como um protocolo de coordenação entre instituições, orquestrando pagamentos globais de forma eficiente e transparente. Os seus fundamentos são pensados para superar os entraves históricos de liquidação internacional, trazendo os princípios da internet para o universo dos pagamentos.
Uma das coisas que mais me chamou atenção ao escrever sobre a Wise foi perceber como a empresa conseguiu construir uma rede de pagamentos eficiente ao permitir contas em múltiplas moedas e transferências quase instantâneas, com spreads cambiais reduzidos em corredores estratégicos. Mas isso exigiu infraestruturas de pagamentos em tempo real (RTP) nas duas pontas, fazendo com que o verdadeiro desafio fosse navegar por ambientes regulatórios complexos e fragmentados, distribuídos por diversas jurisdições.
No caso da Circle, o caminho escolhido foi diferente, mas igualmente ambicioso: em vez de depender da infraestrutura financeira tradicional, marcada por redes como SWIFT e pelo modelo de bancos correspondentes, a empresa criou sua própria rede de pagamentos baseada em stablecoins, posicionando-se como a infraestrutura da nova internet do dinheiro. Por meio do CPN, a Circle habilita pagamentos globais com USDC e EURC, reduzindo significativamente a complexidade técnica e regulatória. Seja para o comércio exterior, salários internacionais, remessas familiares ou pagamentos para criadores de conteúdo, o CPN viabiliza experiências mais eficientes e inclusivas, muitas vezes antes inviáveis em sistemas tradicionais.

De acordo com os documentos da empresa, a ambição do CPN é tornar-se o “protocolo de dinheiro” da internet: uma base neutra e auditável3. Com uma arquitetura híbrida, a plataforma combinou o melhor dos mundos onchain e offchain, permitindo desde liquidação quase instantânea até a criação de módulos personalizados para integrações com serviços financeiros diversos, como crédito, seguros, escrows ou até pagamentos por IA.
Na prática, isso já se traduz em casos como: pagamentos em stablecoins pela Stripe com liquidação via Solana; uso do USDC pela Visa para liquidações com a Worldpay e o Nubank; e integrações de empresas que utilizam o CPN para simplificar salários globais e financiamentos comerciais.
👉 Inscreva-se na W Fintechs e receba toda segunda-feira uma análise como essa no seu e-mail.
O próximo protocolo do dinheiro
Desde o início, a Circle escolheu navegar com uma abordagem institucional rara em um ecossistema muitas vezes marcado por ruptura, informalidade e experimentação radical. Ao fazer isso, conseguiu algo incomum: combinar credibilidade no mundo financeiro tradicional com relevância no ambiente digital descentralizado.
Essa posição se refletiu nas alianças estratégicas que construiu com reguladores, bancos centrais e formuladores de políticas ao redor do mundo. Enquanto muitos projetos cripto evitavam a arena regulatória, a Circle caminhou em direção a ela. Fica clara a ambição da Circle em querer ser a ponte entre o sistema financeiro legado e a nova camada digital que nasceu com as blockchains, smart contracts e as stablecoins. Com o CPN, ficou ainda mais nítido o seu papel de não desafiar as instituições tradicionais, mas conectá-las ao universo cripto.
Nesse movimento, o USDC já circula em mais de 190 países, com mais de US$ 150 bilhões em volume de transações e integração direta a 14 blockchains públicas 4.
Ainda assim, os desafios ainda são muitos. Em março de 2023, a Circle enfrentou um momento de alta vulnerabilidade quando parte das reservas do USDC estava alocada no Silicon Valley Bank. Apesar de todos os fundos terem sido recuperados e da confiança restaurada, o episódio expôs a dependência da empresa em relação à estabilidade do sistema bancário tradicional.
Desde então, a Circle diversificou seus parceiros de custódia e reforçou a transparência sobre suas reservas — que em 2024, como citado acima, eram compostas por 23% em títulos do Tesouro dos EUA, 63% em acordos de recompra e 14% em dinheiro em caixa. Mas novos desafios surgiram ao longo do caminho: a competição com stablecoins algorítmicas, tokens corporativos como o PayPal USD, e a incerteza regulatória global que ainda ronda o setor, por exemplo.
No campo regulatório, o USDC opera em um terreno ambíguo. Países como Estados Unidos, Reino Unido, Brasil e Singapura adotam abordagens distintas quanto à classificação e supervisão de stablecoins. No Brasil, como mostrei na edição #139, ainda não há consenso se elas são meios de pagamento, ativos mobiliários ou instrumentos híbridos — o que gera insegurança jurídica para emissores e usuários. E embora a Lei dos Criptoativos tenha avançado, o enquadramento jurídico de stablecoins segue indefinido.
Nos EUA, o GENIUS Act 5 — aprovado no Senado no fim de maio de 2025 — propõe a primeira regulação federal de stablecoins. Estabelecendo um sistema regulatório duplo: emissores acima de US$10 bilhões seguirão regras do FED (bancários) ou OCC (não bancários), enquanto os menores poderão seguir as regulações estaduais. A emissão será restrita a instituições autorizadas. Também prevê transparência nas reservas e auditorias anuais.
O que a Circle prova é que se o dinheiro da era industrial era baseado em papel, hierarquia e instituições físicas, o dinheiro da era digital será baseado em transparência e interoperabilidade entre diferentes camadas globais. Jeremy Allaire, o CEO da empresa, entendeu isso quando insistia na abertura dos protocolos da internet e passou a defender que o dinheiro seria, um dia, um protocolo da internet. Esse dia parece ter chegado.
Saúde e paz,
Walter Pereira
Disclaimer: As opiniões expressas aqui são de total responsabilidade do autor, Walter Pereira, e não refletem necessariamente as opiniões dos patrocinadores, parceiros ou clientes da W Fintechs.
https://etherworld.co/2018/10/23/coinbase-announces-support-for-usdc-stablecoin/
https://www.spglobal.com/_assets/documents/ratings/research/101610806.pdf
https://6778953.fs1.hubspotusercontent-na1.net/hubfs/6778953/PDFs/Whitepapers/CPN_Whitepaper.pdf
https://hkifoa.com/wp-content/uploads/2024/11/state-of-usdc-economy-circle.pdf
https://www.congress.gov/bill/119th-congress/senate-bill/394/text
interessante